quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Você foi.. Você é...


Não seria possível acreditar: ele estava sentado ao seu lado no avião – sua grande paixão de infância. Quanto tempo? Quando foi a última vez que tinham se visto? Janeiro de 74. Sábado, 19 de janeiro, às oito da noite. Aeroporto de Congonhas. 

O pai dele iria trabalhar nos Estados Unidos e ela foi com toda a escola se despedir dele e da irmã no aeroporto. Havia lhe feito um cachecol, pois imagina fria Nova Iorque nesta época do ano. As últimas palavras dele a ela foram: “Você é...”, mas todos começaram a cantar uma música de despedida e nunca mais se viram. Agora ele estava lá, ao seu lado e nem lhe havia reconhecido.

Dele ela sabia tudo ou quase: morava na Rua Riachuelo, 402, perto do Parquinho. Era um aluno fraco que quase a fez repetir a oitava série... A mão dele não tinha aliança... Será que se casou? Tem filhos? Será que estudou? Quase não tem barriga... De terno!
Emocionada, ela se esqueceu até do medo de voar e nem percebeu a decolagem da ponte aérea Rio-São Paulo. Quando novamente voltou-lhe os olhos, ele a olhava fixamente, como quisesse dizer algo importante, como tivesse uma grande dúvida:

-  Oi. Você é... – e parou hesitante a frase.

Ela se lembrou de sua última frase do aeroporto, das lágrimas sobre o piso preto e branco do aeroporto, e agora, como se o destino quisesse retomar exatamente do ponto em que pararam. Mas, antes que ele continuasse, ela facilitou:

-  Eu sou a Silmara. Lembra? Estudamos juntos da primeira à oitava série...

-  Silmara Correia e Castro. Número 32, menos na sétima série, era 34. Rua Quintino Bocaiúva, 732, fone meia nove nove, depois dois meia nove nove... Melhor aluna da classe, tocava piano e organizava a equipe das gincanas... Você foi...

-  Nossa! Nem eu me lembrava daquela época que os telefones tinha três dígitos. Como você se lembra de tudo isso depois de 32 anos?

-  Trinta e dois anos e nove meses hoje! Tem coisas que a gente não esquece! Você foi...

-  Lembra do final da oitava série?

-  Lembro. Eu ia levar pau de matemática, você me passou a cola na última prova. Mesmo assim, eu fiquei de exame e, por sorte, você também.

-  Não foi por sorte. Eu sabia que você não passaria no exame e ia precisar de cola novamente. Aí eu tirei uma nota bem baixa na última prova para poder fazer o exame final com você e estudarmos juntos.

-  Puxa. Você iria se orgulhar. A partir daí me tornei um bom aluno. Cursei matemática... Em Harvard. Acredita? E hoje sou doutor em matemática! Acho que sem você eu teria repetido o ano e hoje seria... Sei lá! Você foi... Você é...

-  Eu? Eu... Quem diria! Doutor em matemática!

Ele nunca foi muito bom com as palavras. A mão dela, cheia de anéis, não lhe permitia identificar se havia ali uma aliança ou não. Aquela menina magrinha tinha se tornado uma bela mulher. O que teria sido da vida dela. Por que ela nunca o deixava concluir a frase?

-  E você o que faz? – Pergunta ela.

-  Eu? Eu me casei, tenho dois filhos, um mora no Rio, depois eu me separei e agora...

Senhores Passageiros, estamos iniciando nosso procedimento de aterrissagem no Aeroporto de Congonhas em São Paulo. Por favor, apertem os cintos...

-  Está tudo bem? – Perguntou ela logo após o anúncio do comandante.

-  Não. Eu morro de medo de voar. Até me esqueci disso depois que a vi. Mas decolagens e aterrissagens quase me matam.Levo um bom tempo para me refazer.

-    Segure na minha mão. Isso ajuda a diminuir o medo.

De mãos dadas, ela nem medo tinha mais. Poderia até cair o avião.
Juntos, sem perceber as mão dadas ainda, percorriam o piso xadrez do aeroporto donde tinham se despedido há 32 anos. Em silêncio, caminharam para os táxis, ela se despediu e entrou em um carro preto.

Do banco de trás, do outro lado da rua, ela se volta e grita:

-    O que você ia dizer naquele dia?

-    Ia dizer que você foi... você é...

Passa, porém, um ônibus entre eles que não a deixa ouvir a conclusão:

-    ...o grande amor de minha vida - a todo pulmão.

E quando ele olha aliviado por finalmente ter concluído a frase guardada há 40 anos, o carro não estava mais lá.

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