sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Crenças

 Ilustração: Janny

 Estava deitado em minha cama, quando ela veio, encostou sua cabeça em meu peito e permaneceu ali, quieta. Sabia que quando ela fazia isso, vinha alguma conversa séria.

Seu jeito meigo, infantil me encantava. Minha vida havia mudado depois que a conheci. Tinha aprendido muito nestes últimos 8 anos.
Depois de sua chegada, parei de ver TV e ler jornal à noite. Desligava tudo para ficarmos em paz. Comigo ela conheceu Vinícius, Chico, Gal, João Gilberto, Tom, Luiz Gonzaga etc. Com ela percebi que ainda tinha muito que aprender das coisas que pensava que já sabia.
Entretidos em nossos jogos, vivíamos entre músicas e livros, beijos e abraços. Ela era uma criança, querendo aprender tudo que podia e eu era uma criança, querendo reaprender tudo que podia.
As minhas divagações foram interrompidas com uma pergunta:
- Tem gente que acredita que depois de morrer vai para o 
  céu, tem gente que acredita que morre e volta,    morre e
  volta. Você acredita em quê?
Sempre me senti à vontade, com os amigos, para brincar com estas incertezas, mas desta vez não. Ela sempre confiou em mim e merecia uma resposta séria e honesta. Mas em que realmente acreditava eu?
Ansiosa ela me apressava.
- Estou pensando, respondi meio irritado.
- Ah! – Ela, meio impaciente, mas sem se arrepender da 
  sinuca em que me colocava.
Após algum tempo, não exatamente com estas palavras, comecei:
- Você tem algumas características de seus pais, que por
  sua vez têm dos pais deles, que têm dos avós e   assim por
  diante. Seus filhos vão ter algumas características suas e 
  de todas estas pessoas. Certo?
- Certo. Concordou ela, já sentada na cama.
- Fora isso, tem muita coisa que você aprendeu comigo, na
  escola, com seus amigos e vai ensinar para os seus 
  amigos, filhos e netos.
- Ou seja, seus filhos e netos além de algumas
  características herdadas de você, vão ter também algo de
  bom (ou ruim) que eu transmiti e ensinei durante a minha  
  vida. Desta forma eu viverei para sempre. Não no meu
  corpo, mas com o que eu tentei aprender, melhorar e
  ensinar nesta vida.
- Eu serei julgado por tudo que transmiti às várias
  encarnações que me sucederem. Ao mesmo tempo terei
  meu juízo final e minhas várias encarnações. Certo?
Ela apenas consentiu com a cabeça, antes que eu continuasse.
- Assim como cada fio de cabelo e cada grão de arroz que
  você come têm importância fundamental para
  que todo o nosso corpo sobreviva, cada pessoa que passa
  por aqui também. Pouco importa se viva um   dia, um ano
  ou cem, todos têm algo a nos ensinar, os bons e os ruins.
  Se cada um se preocupar em fazer bem o seu papel,
  teremos, em algum tempo, um mundo melhor.
Ela me olhava com atenção, sem entender tudo que havia dito. Mas hoje é nisto que acredito: na nossa vida eterna, através das várias encarnações que irão nos suceder e julgar todos os nossos atos! Em cada conversa que tocam neste assunto, não brinco mais.


Marina querida, passados quase dois anos desta conversa, você reforça minha crença e esperança na humanidade.


Parabéns pelos seus dez anos de vida.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

A Bola Torta

Ao Afonsinho


No início dos anos 70, após o Tri no México, eu me tornara um fanático por futebol. Jogava bola todos os dias. Quando não estava jogando, colecionava figurinhas de times ou jogava futebol de botão. Meu grande sonho era jogar no Santos de Pelé.
Nosso timinho era bom. Jogávamos com times de outros bairros e, mesmo sem muita organização, íamos bem. Tínhamos jogo de camisa e bolas, ganhos de um vereador. Dentre essas bolas, tinha uma torta: se fosse chutada à direita, ela desviava tanto que saía à esquerda. Vivíamos aprontando com essa bola. Nos divertíamos à beça.
Resolvemos participar de um campeonato, mas tínhamos dois grandes problemas: apesar de jogarmos bem, éramos todos moleques; e, talvez por isso, faltava conjunto. Convidamos para técnico o Inocêncio que, na década de 50, havia sido um grande goleiro e jogara no Palmeiras.
O Nô nos ensinou sobre tática, como chutar a gol e, principalmente, bater faltas: “Ótima oportunidade de gol”.
É claro que não resistimos a pegá-lo com a bola torta. Ele, apesar sério, tinha senso de humor e rimos muito com isso.
Mas o que mais aprendemos com o Nô foi como jogar bola de verdade, sem fazer faltas ou reclamar do juiz. Ensinamentos sobre ética e caráter que carregamos por toda vida. Com ele, descobrimos que o mais importante era jogar e ganhar seria conseqüência disso.
E funcionava! Apesar de todas as dificuldades, contra adversários maiores e violentos, fomos ganhando quase todos o jogos, até chegarmos à final do campeonato.
A final era contra o Caiçara. Por terem feito melhor campanha, jogavam em casa pelo empate. Como em todo campeonato, tínhamos uma grande desvantagem por fazer poucas faltas. A salvação era o Marolla no gol que, apesar dos 13 anos, fazia defesas incríveis. O difícil mesmo era jogar contra o juiz que roubava descaradamente: tinha anulado dois gols nossos, não marcou um pênalti e deixava o time deles meter o pé à vontade.
Assim, com o juiz impedindo o nosso time de marcar gols e o Marolla pegando tudo, o jogo caminhava para terminar em 0 x 0, quando, aos 44 do segundo tempo, o Nandinho recebeu uma bola, driblou um, dois, três e foi derrubado dentro da área. Pênalti! Não, não podia ser: o juiz estava marcando fora da área. Foi um briga geral. Até o Nô, que era a calma em pessoa, perdeu a paciência e entrou em campo para discutir com o juiz. Antes de sair, pôs a bola em minhas mãos e, apontando para a Bandeira do Brasil, atrás do gol, à direita, disse:
- Mira na Bandeira e chuta forte.
Ao pegá-la, entendi: era a bola torta. O filho da mãe não estava bravo nada, havia entrado em campo apenas para trocar as bolas.
Tomei distância e, como ele me dissera, chutei forte. A bola ia pra longe do gol, mas, de repente, guinou à esquerda e caiu - um golaço.
Enquanto o time ainda comemorava, ele, com medo que tivesse desaprendido, em um só instante, tudo que me ensinara, disse:
- Não foi ético o que fiz.
- Mas foi justo o que fizemos – respondi.
- Mas não cabe a nós fazer justiça com as próprias mãos.
- No caso, foi com os próprios pés – concluí rindo do 
  trocadilho infame.
Durante um bom tempo, o assunto era a força e o efeito de meu chute. Fiquei famoso por aquela falta. Vieram até propostas do Guarani e do Santos para eu fazer testes, mas não fui: sabia que neste caminho não encontraria mais bolas tortas, nem homens retos.