Ao Afonsinho

Nosso timinho era bom. Jogávamos com times de outros bairros e, mesmo sem muita organização, íamos bem. Tínhamos jogo de camisa e bolas, ganhos de um vereador. Dentre essas bolas, tinha uma torta: se fosse chutada à direita, ela desviava tanto que saía à esquerda. Vivíamos aprontando com essa bola. Nos divertíamos à beça.
Resolvemos participar de um campeonato, mas tínhamos dois grandes problemas: apesar de jogarmos bem, éramos todos moleques; e, talvez por isso, faltava conjunto. Convidamos para técnico o Inocêncio que, na década de 50, havia sido um grande goleiro e jogara no Palmeiras.
O Nô nos ensinou sobre tática, como chutar a gol e, principalmente, bater faltas: “Ótima oportunidade de gol”.
É claro que não resistimos a pegá-lo com a bola torta. Ele, apesar sério, tinha senso de humor e rimos muito com isso.
Mas o que mais aprendemos com o Nô foi como jogar bola de verdade, sem fazer faltas ou reclamar do juiz. Ensinamentos sobre ética e caráter que carregamos por toda vida. Com ele, descobrimos que o mais importante era jogar e ganhar seria conseqüência disso.
E funcionava! Apesar de todas as dificuldades, contra adversários maiores e violentos, fomos ganhando quase todos o jogos, até chegarmos à final do campeonato.
A final era contra o Caiçara. Por terem feito melhor campanha, jogavam em casa pelo empate. Como em todo campeonato, tínhamos uma grande desvantagem por fazer poucas faltas. A salvação era o Marolla no gol que, apesar dos 13 anos, fazia defesas incríveis. O difícil mesmo era jogar contra o juiz que roubava descaradamente: tinha anulado dois gols nossos, não marcou um pênalti e deixava o time deles meter o pé à vontade.
Assim, com o juiz impedindo o nosso time de marcar gols e o Marolla pegando tudo, o jogo caminhava para terminar em 0 x 0, quando, aos 44 do segundo tempo, o Nandinho recebeu uma bola, driblou um, dois, três e foi derrubado dentro da área. Pênalti! Não, não podia ser: o juiz estava marcando fora da área. Foi um briga geral. Até o Nô, que era a calma em pessoa, perdeu a paciência e entrou em campo para discutir com o juiz. Antes de sair, pôs a bola em minhas mãos e, apontando para a Bandeira do Brasil, atrás do gol, à direita, disse:
- Mira na Bandeira e chuta forte.
Ao pegá-la, entendi: era a bola torta. O filho da mãe não estava bravo nada, havia entrado em campo apenas para trocar as bolas.
Tomei distância e, como ele me dissera, chutei forte. A bola ia pra longe do gol, mas, de repente, guinou à esquerda e caiu - um golaço.
Enquanto o time ainda comemorava, ele, com medo que tivesse desaprendido, em um só instante, tudo que me ensinara, disse:
- Não foi ético o que fiz.
- Mas foi justo o que fizemos – respondi.
- Mas não cabe a nós fazer justiça com as próprias mãos.
- No caso, foi com os próprios pés – concluí rindo do
trocadilho infame.
Durante um bom tempo, o assunto era a força e o efeito de meu chute. Fiquei famoso por aquela falta. Vieram até propostas do Guarani e do Santos para eu fazer testes, mas não fui: sabia que neste caminho não encontraria mais bolas tortas, nem homens retos.
2 comentários:
Adorei "A Bola Torta", leve e divertido!
Oi Fais, aqui é o Pedrinho de Jaú(hoje São Paulo).Parabéns pelo conto, conheço todos os personagens e imagino que foi tudo assim mesmo, bem..."...propostas do Guarani e Santos.." tenho que acreditar na liberdade da ficção.
Abração, um dia nos encontraremos.
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