Não
seria possível acreditar: ele estava sentado ao seu lado no avião – sua grande
paixão de infância. Quanto tempo? Quando foi a última vez que tinham se visto? Janeiro
de 74. Sábado, 19 de janeiro, às oito da noite. Aeroporto de Congonhas.
O pai
dele iria trabalhar nos Estados Unidos e ela foi com toda a escola se despedir
dele e da irmã no aeroporto. Havia lhe feito um cachecol, pois imagina fria
Nova Iorque nesta época do ano. As últimas palavras dele a ela foram: “Você
é...”, mas todos começaram a cantar uma música de despedida e nunca mais se
viram. Agora ele estava lá, ao seu lado e nem lhe havia reconhecido.
Dele
ela sabia tudo ou quase: morava na Rua Riachuelo, 402, perto do Parquinho. Era
um aluno fraco que quase a fez repetir a oitava série... A mão dele não tinha
aliança... Será que se casou? Tem filhos? Será que estudou? Quase não tem barriga...
De terno!
Emocionada,
ela se esqueceu até do medo de voar e nem percebeu a decolagem da ponte aérea
Rio-São Paulo. Quando novamente voltou-lhe os olhos, ele a olhava
fixamente, como quisesse dizer algo importante, como tivesse uma grande dúvida:
- Oi. Você é... – e
parou hesitante a frase.
Ela
se lembrou de sua última frase do aeroporto, das lágrimas sobre o piso preto e
branco do aeroporto, e agora, como se o destino quisesse retomar exatamente do
ponto em que pararam. Mas, antes que ele continuasse, ela facilitou:
- Eu sou a Silmara.
Lembra? Estudamos juntos da primeira à oitava série...
- Silmara Correia e
Castro. Número 32, menos na sétima série, era 34. Rua Quintino Bocaiúva, 732,
fone meia nove nove, depois dois meia nove nove... Melhor aluna da classe,
tocava piano e organizava a equipe das gincanas... Você foi...
- Nossa! Nem eu me
lembrava daquela época que os telefones tinha três dígitos. Como você se lembra
de tudo isso depois de 32 anos?
- Trinta e dois anos e nove meses hoje! Tem coisas que a gente não esquece! Você foi...
- Lembra do final da
oitava série?
- Lembro. Eu ia levar
pau de matemática, você me passou a cola na última prova. Mesmo assim, eu
fiquei de exame e, por sorte, você também.
- Não foi por sorte.
Eu sabia que você não passaria no exame e ia precisar de cola novamente. Aí eu
tirei uma nota bem baixa na última prova para poder fazer o exame final com
você e estudarmos juntos.
- Puxa. Você iria se
orgulhar. A partir daí me tornei um bom aluno. Cursei matemática... Em Harvard.
Acredita? E hoje sou doutor em matemática! Acho que sem você eu teria repetido
o ano e hoje seria... Sei lá! Você foi... Você é...
- Eu? Eu... Quem
diria! Doutor em matemática!
Ele
nunca foi muito bom com as palavras. A mão dela, cheia de anéis, não lhe
permitia identificar se havia ali uma aliança ou não. Aquela menina magrinha
tinha se tornado uma bela mulher. O que teria sido da vida dela. Por que ela
nunca o deixava concluir a frase?
- E você o que faz? –
Pergunta ela.
- Eu? Eu me casei,
tenho dois filhos, um mora no Rio, depois eu me separei e agora...
Senhores Passageiros, estamos iniciando
nosso procedimento de aterrissagem no Aeroporto de Congonhas em São Paulo. Por
favor, apertem os cintos...
- Está tudo bem? –
Perguntou ela logo após o anúncio do comandante.
- Não. Eu morro de
medo de voar. Até me esqueci disso depois que a vi. Mas decolagens e aterrissagens
quase me matam.Levo um bom tempo para me refazer.
- Segure na
minha mão. Isso ajuda a diminuir o medo.
De
mãos dadas, ela nem medo tinha mais. Poderia até cair o avião.
Juntos, sem perceber as mão dadas ainda, percorriam
o piso xadrez do aeroporto donde tinham se despedido há 32 anos. Em silêncio,
caminharam para os táxis, ela se despediu e entrou em um carro preto.
Do banco de trás, do outro lado da rua, ela se
volta e grita:
- O que você ia dizer
naquele dia?
- Ia dizer que você
foi... você é...
Passa, porém, um ônibus entre eles que não a deixa
ouvir a conclusão:
- ...o grande amor de
minha vida - a todo pulmão.
E quando ele olha aliviado por finalmente ter
concluído a frase guardada há 40 anos, o carro não estava mais lá.