A minha primeira lembrança sobre justiça foi aos dez anos em uma noite fria de junho...
Tudo, porém, começou bem antes: ainda muito pequeno, eu nem andava, em uma noite meus pais e irmãos, na luta pela posse de terras, foram assassinados. Fui o único a sobreviver. Contaram-me, não me lembro, que fui encontrado em um buraco dentro da casa, coberto de terra, protegido por uma bacia de lata que não me deixava sufocar.
Morávamos na pequena Bocaina, lá pelas bandas do Jahu. Não se tendo notícias de nenhum parente vivo, Dona Ingrid Solber Justus e o Seo Alcides Justus, o homem mais rico de toda região, levaram-me para a casa deles e lá eu fui criado entre seus sete filhos. Tonico, o caçula, tinha a minha idade. Tirando Mildred, todos os outros eram homens.
Dona Ingrid foi quem me deu os primeiros ensinamentos de como me comportar e, aos seis anos, as letras iniciais. Excluído de quase todas as brincadeiras, gostava de ficar junto dela. Ela tocava piano e gostava muito de ler. Um dia me disse: “Daqui cinqüenta anos você será mais ou menos a mesma pessoa que é hoje, menos pelos livros que ler e os amigos que fizer”. Dormi com esta frase por muitos anos e, ali, sem saber, ela me iniciava na filosofia. Eu, como podia, com educação e boas maneiras, retribuía tudo que ela me dava. No primário era o melhor aluno da classe, inclusive melhor que o Tonico e os outros meninos ricos.
Mas a vida, injusta como sempre, levou cedo Dona Ingrid: no parto de uma filha temporã, ela se foi, deixando a todos que gostavam dela, principalmente eu e a pequena Simone, que foi criada por uma empregada da casa. Dela ainda guardei mais uma frase de quando apanhava na escola: “Quem bate, esquece; quem apanha, jamais”. Sem ela por perto, nos momentos difíceis, eu me lembrava do que ela me dizia.
O Bastiãozinho, filho do único médico da Bocaina, e o Tonico viviam aprontando e dando sustos em mim. Falavam que iam estudar na Capital, num tal de Largo do São Francisco. Tinha vontade de conhecer. Devia ser grande e largo. Assim passavam os dias e as noites.
Em uma noite fria de junho, dia 23, um sábado, eu tinha dez anos, era dia de São João, padroeiro da Bocaina, e ia haver uma grande festa junina lá na fazenda do Seo Alcides, perto do pequeno sítio em que eu nascera. Havia fogos, doces, fogueira e muita música.
Brincamos a noite toda e, no finalzinho, o Tonico e o Bastiãozinho vieram me chamar para ver o que acontecia ali perto e eu fui. Lá estavam vários amigos da minha classe. Eles me davam tapas e falavam que eu tirava notas boas, pois copiava as tarefas do Tonico e ele me passava cola nas provas. Eu argumentava que era mentira – e era mesmo, pois eu o ajudava a passar de ano. Mas não tinha acordo, eram tapas e chutes e o Tonico sem em socorrer. Amarram-me então a uma árvore e decidiram fazer um julgamento. Fui julgado e condenado. A pena seria pôr fogo na árvore. Saíram para buscar querosene e nunca mais voltaram. Eu, injustiçado, chorava. Passei ali a noite toda. Só fui encontrado pela manhã por uns peões que começavam a lida matutina. Deram-me comida e cuidaram de mim no final de semana. Só me devolveram à casa do Seo Alcides no domingo à tardinha. Quando Seo Alcides quis saber por onde andara, vi o Tonico e o Bastiãozinho brincando e, com medo, contei que me perdi e fiquei pela fazenda. Nunca me esqueci desta história e de outras tantas que aconteceram naquela época. Lembro-me das professoras e quase de todos os alunos das classes; de cada empregada da fazenda, de cada noite sem dormir...
No ano seguinte fui mandado para o colégio interno em Campinas e nunca mais voltei à Bocaina. Bom aluno, sem família, ficava só nos fins de semana e nas férias. Meu passatempo era a leitura: “Cada livro vale por um mês de escola”, dizia Dona Ingrid. Finalmente, aos dezessete anos, pude conhecer o tal Largo de São Francisco. Esperei para ver se encontrava por lá o Tonico e Bastiãozinho, mas por lá nunca deram as caras.
Com as frases de Dona Ingrid segui a vida: advogado, promotor, juiz e, finalmente, Ministro do Supremo Tribunal – amigos e livros, nem sempre nesta ordem.
Na minha posse, por coincidência, passeando por Brasília, estava o prefeito da Bocaina, o filho do Bastiãozinho. Quando soube que eu também era da Bocaina, não pensou duas vezes: “Vamos fazer uma grande festa em sua homenagem!”.
Neste clima, de recordações, foi que voltei à Bocaina. A banda da cidade, que parecia nada ter mudado com o tempo, tocava logo na entrada da cidade; as ruas ainda eram de paralelepípedo; seo Alcides já havia morrido, mas vi na praça central um busto em sua homenagem. Dos filhos, apenas Simone Justus morava lá. Sobraram ali, porém, alguns de meus conhecidos de infância. Neste momento eu me senti orgulhoso, pois pobre, simples e humilhado, acusado de mentiroso, saí daquele lugar. Podia finalmente provar que não colava na escola, que aprendi, cresci e subi por méritos. O meu cargo e as homenagens eram provas incontestáveis disto. Finalmente seria absolvido.
Após as homenagens fui falar com o Bastiãozinho e outros garotos que participaram de meu julgamento. Todos me cumprimentaram e, em tom de brincadeira, falei da história de muitos anos. Ninguém se lembrava, nem do julgamento, nem de mim. Eram sinceros. Eu... eu me lembrava perfeitamente, de cada cena, de cada detalhe, mas eles não.
Certa estava Dona Ingrid: quem bate, esquece; quem apanha, não!